Crônica contemplada no Prêmio Sérgio Farina, em São Leopoldo/RS, edição 2011
Desde que o descobri, há mais de meio
século, o livro tornou-se meu par preferido em todas as estações da vida. Na
alegria ou na ruína, não saberia viver sem este companheiro por perto.
Refiro-me, especialmente, ao livro literário.
Tomar parte dos destinos inventados -
“reais” enquanto transcorre a leitura – acompanhar a travessia dos personagens
que se levantam de dentro das palavras
é, para mim, um dos grandes baratos da
literatura. Por horas, dias, meses, anos, é um gosto segui-los páginas adentro, suas
almas expostas, às voltas com acertos, equívocos, aviltezas e tudo o mais
que lhes cabe nas linhas e entrelinhas.
É o leitor quem assopra-lhes a brasa
encoberta a fim de que se movam e se
cumpram como criaturas feitas de palavras. Atrás de si vão deixando marcas
indeléveis, algumas à flor das palavras, outras fossilizadas nas entranhas do
dito.
Basta o olho encontrar a primeira
frase do livro Quincas Borba: “Rubião fitava a ensaeada”, para o sangue
literário começar a circular nas veias do personagem. Então é segui-lo da
glória à decadência, parando para dar conta do espanto, das máscaras que
caem, das epifanias que resultam da leitura desta obra excelsa de Machado de
Assis.
Se alguns personagens tornam-se
criaturas fictícias de prestígio, é por conta do leitor ( de notório saber ou
não) que, ao descobri-los, proclama aos quatro ventos as emoções provadas
durante o prazeroso encontro. Não só proclama como, também, volta a visitar às moradias inventadas que lhe são caras.
Em verdade, estas mágicas criaturas –
os personagens – mudam-se do livro para as moradias espirituais do leitor e ali
permanecem a provocar visões, e a virar e revirar o território íntimo, sem
cerimônias: já então são de casa, não precisam pedir licença para nada. Sobem
pelas escadas da imaginação, sentam-se à mesa, caminham pelo assoalho, teto,
paredes; embrenham-se por regiões que o próprio leitor desconhece.
Dom Quixote, por sinal, há quatrocentos
anos, profetizou a própria glória e
imortalidade: “Ditosa idade e século
ditoso, aquele em que hão de sair à luz as minhas famigeradas façanhas, dignas
de gravar-se em bronze, esculpir-se em mármores, e pintar-se em painéis para
lembranças de todas as idades”. Não sei de profecia que tenha se cumprido tão
ao pé da letra como esta. Gravado a sonho, o Cavaleiro da Triste Figura
continua a transitar pelas terras sagradas, a espada em riste contra os
inimigos da imaginação.
Uma vez estabelecidos nos domínios
primaciais, os personagens viram almas e
juntam-se à do leitor que fica, assim, povoado de almas e nutrido de recursos
simbólicos para a travessia no mundo real,
mundo este que oferece, o tempo
todo, almas de plástico, sob medida, no
varejo e no atacado.
Se o leitor os põem em pé, os
personagens não fazem por menos: são bons companheiros em dias de chumbo e
treva. Alguns livros têm o dom da cura.
Tenho certeza que Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto, e Metamorfoses,
de Ovídio, pertencem a esta linhagem.
Os livros que realmente importam
conseguem, como diz Edmond Rostand, “exaltar
com o lirismo, moralizar com a beleza, consolar com a graça e, enfim, dar
lições de alma” , ou nas palavras
de Barry Lopes: “a tarefa da ficção é nos ajudar com discernimento e nos
curar”. E nem importa se os personagens saem dos mosteiros da idade média, do
mundo da cavalaria ou se são contemporâneos do leitor. O que importa é que
sejam movidos à seiva artística.
Um amigo, que já partiu deste mundo, me disse uma vez que “para a prática da leitura, a
vida é muito curta”, querendo dizer que uma vida não chega para ler tudo
que queremos e, principalmente, reler nossos autores prediletos, pois, como já foi dito, e eu repito, há
livros que nunca terminamos de ler, porque são
inesgotáveis, como uma fonte eterna.
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